CONTOS

Abrindo a série de contos do Dando as Letras:

FILHO DA CULPA

As rugas ao redor dos olhos escondidos atrás de profundas olheiras, e alguns fios de cabelo branco em contraste com a pele negra, já revelavam certa maturidade.
Maturidade esta que omitia seus menos de cinquenta anos, mas escancarava a dura vida que parecia lhe somar décadas à idade. Assim era José, ou Zé como era conhecido por mais tantos Zé ninguéns que viviam na rua onde morava. Ele jamais temeu a morte. Não por prezar pela vida, muito pelo contrário, mas por já ter convivido com ela desde seu nascimento. Ainda hoje, ao encarar o espelho a cada amanhecer, é como se os seus olhos lhe fizessem viajar no tempo e recordar cada detalhe da história que seu pai - já falecido há exatos dez anos -, fazia questão de contar a cada oportunidade que tivera.
Era uma noite chuvosa, em um hospital público com poucos recursos, apenas um médico de plantão, algumas enfermeiras (três, dizia o velho, dando características exatas de cada uma) e uma recepcionista muito mal humorada.
José fechava os olhos como se apertasse o off daquele triste filme em qual fora lançado como protagonista e  jogava uma água no rosto procurando limpar da memória o final dessa história que já sabia de cor: a vida de sua mãe terminou exatamente no mesmo instante em que ele soltara o seu primeiro grito.  Grito este que anunciava a sua chegada para os demais presentes, mas que para seu pai, já foi como um prenúncio do luto que o filho levaria pelo resto da vida nas costas, e pelo qual chorava por já saber que seria pesado demais para carregar.
 Zé, então, secava o rosto e assim, como se a culpa ficasse na toalha a lhe esperar até que voltasse a ter coragem de se olhar no espelho novamente, saía para mais um dia de trabalho. Mais um dia em sua vida. Mais dez anos da morte de seu pai. Mais incontáveis vezes a morte de sua mãe a cada manhã.
As rugas ao redor dos olhos escondidos atrás de profundas olheiras, e os muitos fios de cabelo branco em contraste com a pele negra, já revelavam a proximidade da velhice.
José jamais teve uma mulher. O pavor de novamente perder alguém para a morte lhe impedia de tentar renascer através do amor. Zé tampouco teve filhos. Por medo de que se repetisse a saga, e da morte de sua esposa nascesse um herdeiro da sua culpa, se privou da alegria de ouvir a voz de uma criança com um sorriso no rosto e andar desconcertado rumo a um abraço lhe chamando de pai.
Ainda hoje, ao encarar o espelho a cada amanhecer, é como se os seus olhos lhe fizessem viajar no tempo e recordar cada detalhe da história que seu pai - já falecido há exatos trinta anos -, fazia questão de contar a cada oportunidade que tivera. 
Era uma noite chuvosa, em um hospital público com poucos recursos, apenas um médico de plantão, algumas enfermeiras (três, dizia o velho, dando características exatas de cada uma) e uma recepcionista muito mal humorada.
Mais uma vez Zé fechava os olhos para interromper episódio da morte de sua mãe e cobria o rosto com uma toalha como se tapasse o rosto de vergonha.
As muitas rugas ao redor dos olhos escondidos atrás de profundas olheiras, e a cabeça tomada de cabelos brancos em contraste com a pele negra, já revelavam a velhice avançada.
Zé jamais entendeu porque sua vida fora tão longa. Ele que desde menino esperava morrer para enfim poder pedir perdão à sua mãe e ao menos uma vez beijar-lhe a face. Ele entendia cada ano como um castigo. Ainda mais quando em seus aniversários, que para sempre foram lembrados como a data do óbito de sua mãe, seu pai bebia muito e trancava-se no quarto para evitar que um impulso violento pudesse emergir em busca de vingança. “Médico filho da puta”, ele esbravejava. Aqueles berros, ao mesmo tempo em que apavoravam Zé na sua infância, lhe davam certo alívio por ao menos dividir a culpa com a suposta imprudência médica. Mas meia culpa já era o bastante para que jamais fosse presenteado com um “feliz aniversário” vindo de seu velho. Um abraço, então, seria pedir demais.
 Ainda hoje, ao encarar o espelho a cada amanhecer, é como os seus olhos lhe fizessem viajar no tempo e recordar cada detalhe da história que seu pai - já falecido há exatos quarenta anos -, fazia questão de contar a cada oportunidade que tivera.
Era uma noite chuvosa, em um hospital público com poucos recursos, apenas um médico de plantão, algumas enfermeiras (três, foi o que ele viu enquanto ainda estava consciente) e uma recepcionista muito mal humorada.
Naquele momento, José fechou os olhos pela última vez, anunciando em silêncio que havia chegado a hora de acertar as contas com sua culpa. Quando lhe taparam o rosto com uma toalha, finalmente descansou. Todo peso iria ser devorado pela natureza. Ele foi tranqüilo, pois se sua mãe havia lhe dado a vida e morrido; ele agora havia morrido e lhe dado toda sua vida.